artigos e ensaios - 2000 / Mariza Peirano

A análise de rituais e eventos

Esse número da Série Antropologia reúne seis ensaios elaborados como trabalhos finais do curso “A Análise Antropológica de Ritos: Etnografia, Linguagem e Teoria”, que ofereci no primeiro semestre do ano 2000. O curso teve como objetivo central oferecer instrumental analítico para o trabalho de pesquisa dos alunos, focalizando, da perspectiva de ritos e eventos, a relação entre etnografia, linguagem e teoria antropológica. Ênfase especial foi dada ao aspecto comunicativo dos rituais e sua dimensão performativa, partindo da tradição maussiana e durkheimiana que os concebe como atos de sociedade eficazes.

Outra orientação básica do curso foi a de que o estudo de rituais, tema clássico da antropologia, assume um especial significado teórico e, menos óbvio, político, quando transplantado dos estudos clássicos para o mundo moderno. Nessa transposição, o foco antes direcionado para um tipo de fenômeno considerado não rotineiro e específico, geralmente de cunho religioso, amplia-se e passa a dar lugar a uma abordagem que privilegia eventos comunicativos que, mantendo o reconhecimento que lhes é dado socialmente como fenômenos especiais, diferem dos rituais clássicos nos elementos de caráter probabilístico que lhes são próprios. Como se pode constatar nos trabalhos que se seguem, na análise de eventos mantém-se o instrumental básico da abordagem de rituais, mas implicações são direcionadas e expandidas. Nesse sentido, o ritual se torna menos um “tipo de comportamento”, mas verdadeira forma elementar da vida social. Permite e favorece, assim, uma fusão na qual etnografia & teoria se complementam.

A opção pela análise de eventos, no contexto atual do desenvolvimento da antropologia, contrasta com a construção de narrativas que hoje domina grande parte da disciplina que se faz nos centros da “antropologia internacional” (para usar expressão de Gerholm & Hannerz 1982), como é o caso dos Estados Unidos.1 Lá, narrativas e estórias são alternativas epistemológicas e políticas em um universo pós-moderno, no qual o exotismo – traço que teria dominado a disciplina por um século – provoca intenso mal-estar no mundo que se quer igualitário. Quando passam a condenar a etnografia realista como ultrapassada, a questionar a autoridade do antropólogo como autor, e a denunciar a validade dos “fatos” no projeto de uma disciplina não-colonial, especialistas vêm como novas possibilidades de construção do texto etnográfico desde notas de campo, biografias, entrevistas, ficção, até manifestos e comentários (cf. Peirano 1997, 1998, 1999). Em contraste com esta posição – que naturalmente não deixa de afetar a antropologia que se desenvolve nos “arquipélagos” –, a proposta de se analisar eventos pretende definir um lugar de fala alternativo: um lugar onde a construção do objeto se pauta, como nos precursores franceses, mais pela diferença entre pesquisador/ pesquisado, além do comprometimento entre os dois (quer mais, quer menos explícito), do que pelo puro exotismo. Leia na íntegra...