artigos e ensaios - 2020 / Mariza Peirano

(a)Os Pés do Professor Florestan

Os vínculos intelectuais são laços de base afetiva, o que me permite a liberdade de homenagear Florestan Fernandes nesse momento em que sua vida se torna memória, mas seu trabalho sobrevive. Exaltado como sociólogo e recuperado como antropólogo, Florestan tornou-se no Brasil um instaurador, para usar a feliz expressão do amigo e colega Antonio Candido. Sua influência é reconhecida em várias disciplinas do conjunto que denominamos de ciências sociais, e de uma ampla área de estudos de base humanista.

Mas Florestan Fernandes instaurou, antes, um ethos e uma proposta acadêmica; depois, as disciplinas. E porque hoje convivemos com definições relativamente claras, ao olharmos o passado concluímos, talvez com facilidade exagerada, que Florestan Fernandes teria fundido, em determinado momento de sua carreira, todas as vertentes hoje existentes. É preciso, portanto, contextualizar essa visão presentista e examinar seu anacronismo.

No período em que Florestan Fernandes se formou estavam diferenciadas, não as disciplinas, mas as influências nacionais - aquelas influências francesas, anglosaxãs e alemãs cuja combinação Florestan desenvolveu no processo de provar, aqui e alhures, "que era capaz". Como vários depoimentos indicam, Florestan queria mostrar sua capacidade e envergadura, aproveitando as oportunidades que lhe eram oferecidas para "enfeitar o destino" (como na citação que faz de Thomas Mann; cf. FERNANDES, 1996, p. 9), para estar preparado e socialmente legitimado para mudar de rota quando desejasse. Somos, portanto, herdeiros desse projeto que, de um lado, visava estabelecer os padrões acadêmicos de excelência através de seu próprio exemplo e, de outro, definir a vocação para a ciência. Como explica Antonio Candido: "Só quando estava saturado de teoria conseguiu chegar à posição de sociólogo empenhado em atuar politicamente segundo um espírito haurido no marxismo" (1996, p. 8). E como o próprio Florestan confessou, A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá responde a uma tradição de tese que nós absorvemos dos franceses. Ele quis ser o primeiro e único, impedindo que seus assistentes reproduzissem o exemplo. "Mostrar que era capaz" implicava, então, ir além de Alfred Métraux, mas também de Gilberto Freyre; ultrapassar os limites da universidade então recente, do mundo intelectual restrito, situar-se "fora e acima das precariedades dos autores da moda e da imitação colonial" (FERNANDES, 1996, p. 18). Leia na íntegra...