artigos e ensaios - 2000 / Mariza Peirano

A antropologia como ciência social no Brasil

O fato

É no periodo que compreende as décadas de 60 e 70 que a antropologia no Brasil começa a se ver como uma genuína ciência social - isto é, como um ramo da sociologia dominante dos anos 40 e 50. Penso não ser exagero usar como metáfora o fato de a antropologia ter se desenvolvido como uma "costela" da sociologia então hegemônica. No entanto, para se constituir como antropologia nesse contexto, foi necessário manter e desenvolver um estilo sui generis de ciência social, no qual uma dimensão de alteridade assumisse a dupla função de produzir uma antropologia no Brasil e do Brasil.

Inicio portanto com a pergunta: que há de fundamental no anos 60 que marca essa orientação? Se optamos por um olhar institucional, é nos anos 60 que se implantam os primeiros programas de pós-graduação em antropologia nas universidades federais. É esse o momento em que se inicia a reprodução social dos antropólogos de maneira sistemática, formando o que hoje, retrospectivamente, se reconhece como gerações e descendências. Mas uma segunda perspectiva antecede a fundação dos programas e focaliza o contexto disciplinar da época, isto é, a relação entre a antropologia e a ciência social hegemônica então: a sociologia. Nesse contexto histórico, condições sociais favoreceram, por exemplo, o aparecimento do conceito de "fricção interétnica"- noção que marcou, conceitual e institucionalmente, a inclusão de pontos de vista e orientações teóricas considerados, na época, propriamente sociológicos a uma temática reconhecida como antropológica.

O bem-sucedido conceito de fricção interétnica toma a questão indígena como motivação para se pensar a sociedade nacional "através da presença certamente 'incômoda' dos grupos tribais" (Cardoso de Oliveira 1978: 11). O índio era um indicador sociológico para os que estudavam a sociedade nacional, seu processo expansionista e sua luta para o desenvolvimento - tanto quanto o negro havia servido ao mesmo propósito para Florestan Femandes. O adjetivo íncômodo é revelador de um ideal de sociedade nacional integrada, se não para o antropólogo, para a sociedade civil dominante. Mas hoje, ao se rever o sucesso institucional das disciplinas, é elucidativo lembrar que para Egon Schaden - que ocupou a cadeira de antropologia na USP por quase duas décadas, de 1949 a 1967- "nunca chegou a esboçar-se, felizmente, na Universidade de São Paulo, algo que pudesse denominar-se uma 'escola antropológica paulista'" (Schaden 1984: 254; ênfase minha). Aqui é o advérbio o índice revelador da ironia do antropólogo e podemos glosar a afirmação como "Felizmente a antropologia da USP não seguiu [o sucesso d]a sociologia da USP".Leia na íntegra...