artigos e ensaios - 2011/ Mariza Peirano

Identifique-se!

O caso Henry Louis Gates versus James Crowley como exercício antropológico

No mundo moderno, documentos são objetos indispensáveis, sem os quais não conseguimos demonstrar que somos quem dizemos ser. Precisamos de provas materiais que atestem a veracidade da nossa autoidentificação, já que, por nós próprios, esse reconhecimento é inviável. Nossa palavra não é suficiente, e, sendo assim, estes pequenos objetos que carregamos nos bolsos e nas bolsas – geralmente de papel plastificado (como a carteira de identidade ou a de motorista), de plástico (CPF e cartões de crédito), ou livretos de papel timbrado e numeração própria (passaporte e carteira de trabalho), mais tradicionais (título de eleitor), ou mais atuais (com código de barras, dados biométricos e tarjas magnéticas) –, emitidos por órgãos legalmente autorizados, servem como amuletos modernos que abrem portas e, na sua ausência, fecham-nas.

Identidade, noção de pessoa, concepção de indivíduo, técnicas corporais – todos estes são temas clássicos e continuamente recorrentes na antropologia. Contudo, ainda que o tópico dos documentos tenha aí sua fundamentação teórica, interessa-me, neste ensaio, não a discussão conceitual abstrata, mas o exame dos mecanismos por meio dos quais são realizados os processos que resultam em algum modo de tipificação. Interesso-me, em especial, pela distinção entre as várias formas que utilizamos para classificar e singularizar a nós e às pessoas em nosso redor. Assim, em vez de identidade como fenômeno sociológico, meu campo de investigação converge para a classificação. Aquilo que denominamos "identidade" geralmente não leva em consideração que se trata de um processo em permanente movimento, precário e variável, e que envolve mais de uma pessoa, além da convenção que as une.

Neste artigo, o evento etnográfico central ocorreu em julho de 2009 em torno da prisão de Henry Louis Gates Jr. pela polícia da cidade de Cambridge, Massachusetts, nos Estados Unidos. Especialista reconhecido (embora controverso) em estudos afro-americanos da Universidade de Harvard, Gates foi preso após uma denúncia de arrombamento da porta de entrada de uma casa no centro nobre da cidade que, afinal, era sua própria residência. Depois de apresentar o evento pelos olhos da mídia, examino a diferença proposta pelo historiador Valentin Groebner (2007) entre "reconhecimento" e "identificação" – dois processos distintos que, definidos adiante, se baseiam na comparação entre uma pessoa e suas características. Esses dois modos esclarecem aspectos do caso em pauta, o que me faz recontá-lo à luz desses dois processos. Em uma pausa, examino então o dossiê sobre o incidente, produzido por um comitê independente e divulgado um ano depois, em que os principais personagens, o professor e o policial que o prendeu, são considerados "faltosos" (at fault) em termos de responsabilidade em relação à segurança pública. Finalizo convocando Charles Peirce para dialogar com Groebner e para introduzir o mecanismo do profiling e, assim, arrematar a discussão sobre as lógicas implícitas na singularização de uma pessoa por meio de papéis formais. Embora hoje os documentos de identidade obtenham o reconhecimento social legítimo, eles convivem com outras formas menos autorizadas, mas não menos familiares no nosso dia a dia. Esta ampliação do ideário moderno é a possível contribuição deste exercício.Leia na íntegra...