capítulos de livros - 1999 / Mariza Peirano

Antropologia no Brasil

(Alteridade contextualizada)

 

O problema

Por muito tempo a antropologia foi definida pelo exotismo do seu objeto e pela distância, concebida como cultural e geográfica, que separava o pesquisador do seu grupo de pesquisa. Essa situação mudou. Mesmo nos centros socialmente legítimos de produção antropológica - para muitos, onde se faz a "antropologia internacional" - hoje o ideal do encontro radical com a alteridade não é mais a dimensão considerada essencial da antropologia. Nesses centros, houve uma mudança gradual em que a alteridade foi se tornando mais próxima - dos trobriandeses aos Azande, destes aos Kwakiutl passando pelos Bororo, daí para os países mediterrâneos, até que os dias atuais, bem diferente de há vinte anos atrás, uma antropologia que se faz perto de casa, at home, é não só aceitável quanto desejável. No caso europeu, esse tipo de investigação permanece sendo considerada "antropologia": para outros, os norte-americanos especialmente, a investigação at home deixa de ser antropologia e passa a fazer parte dos cultural studies (ou feminist studies, science studies etc).

Sugiro que, mesmo se a dimensão da alteridade mudou, o princípio não desapareceu. A idéia de que a alteridade é um aspecto fundante da antropologia, sem a qual a disciplina não reconhece a si própria, é um dos argumentos centrais desse ensaio. O Brasil é o caso etnográfico privilegiado. Chamo a atenção para o fato de que, no contexto brasileiro, as exigências relativas à alteridade adquiriram desde cedo contornos específicos. Uma alteridade radical - no caso, a indígena -, vigente até os anos 50, nas décadas seguintes passou a conviver com alteridades "amenizadas" em que antropólogos faziam pesquisa sobre o contato com as populações indígenas, com camponeses, chegando aos contextos urbanos até que, mais recentemente, nos anos 80, passaram a dirigir sua refelxão para a própria produção sociológica, tornado-se este um caso de alteridade mínima. No contexto da antropologia no Brasil, nos últimos trinta anos a alteridade deslizou, territorial e ideologicamente, em um processo dominado pela incorporação de novas temáticas e ampliação do universo pesquisado.

O exemplo brasileiro revela, assim, que a diferença cultural pode assumir, para os próprios antropólogos, uma pluralidade de noções: se em termos canônicos ela seria tão radical que idealmente estaria além-mar, ao se aculturar em outras latitudes, a alteridade se traduziu em diferenças relativas e não necessariamente exóticas. Juntas ou separadas, essas diferenças podem ser culturais, sociais, econômicas, políticas, religiosas e até territoriais. Assim sendo, o processo que nos centros metropolitanos levou um século para se desenvolver, isto é, trazer (de além-mar) a disciplina para casa, no Brasil não demorou mais que três décadas. Mesmo que entre nós hoje existam prioridades intelectuais e/ou empíricas, assim como modismos (teóricos ou de objetos/sujeitos), não há propriamente restrições em relação a essa multiplicidade de "alteridades". Na última década, inclusive, a presença de um mínimo de especialidades, entre elas temáticas indígenas, camponesas, urbanas, afro-brasileiras e outras, vem sendo considerada uma exigência para a definição de um departamento de excelência. (Nos Estados Unidos os critérios são diferentes e um bom departamento de antropologia se define pelas especialidades em áreas concebidas como geográfico-culturais que abrangem os vários continentes). Leia na íntegra...