diversos - 2012 / Mariza Peirano

Gilberto

Academia Brasileira de Ciências, Homenagem a Gilberto Velho, 28 de agosto de 2012

Conheci Gilberto Velho há 45 anos, na Faculdade Nacional de Filosofia, a FNFi. Aos 24 anos, ele já era a figura imponente que manteve durante sua vida. É possível que ele não me conhecesse então, inclusive porque, mais moço do que eu, se formou primeiro, que antes passei pelo curso de arquitetura na UnB. Talvez tivéssemos nos encontrado ainda mais cedo, porque frequentamos a mesma escola pública, a Cócio Barcellos, em Copacabana, nos idos de 1950.

Apesar desta longa história, só nos tornamos amigos há mais ou menos 20 anos. Amigos próximos, há uns 15. Isso aconteceu depois que rejeitei um convite – Gilberto não gostava que recusassem os convites que fazia, inclusive porque eram, a seu ver (e a meu também), muito honrosos. Se assim eram, o ato de ser convidado era reconhecimento de competência. Naquela ocasião, Gilberto não aceitou meu argumento: participar do comitê que julgaria o mérito de projetos impediria candidatar-me no ano seguinte. Mas algumas semanas depois aceitou que "cada um de nós tem suas prioridades". Certamente, sua prioridade naquele momento era desempenhar o papel de decano, de quem estabelece competências, reconhece mérito, prioriza projetos. (O meu, participar de um programa de pesquisa coletivo.)

A história de desentendimentos, sabemos os antropólogos, sempre é reveladora. Tentarei desvendar algumas facetas desse evento.

A dimensão pessoal é bem conhecida de quem conviveu com Gilberto. Desde o tempo do Colégio de Aplicação ele demonstrava seu brilhantismo como orador e seu dom no uso das palavras. São poucas as pessoas que conheço capazes de manter uma audiência atenta por 50 minutos, tendo nas mãos apenas uma ficha 3 x 5. Além disso, cultivava uma atitude imperial. Muitas décadas depois do CAp, nos jardins do Museu Nacional, foi seu porte que levou o antropólogo Stanley Tambiah, que visitava o Brasil em 1996 para proferir uma das conferências da Anpocs, a chamá-lo "The Emperor". Esta brincadeira, como todas, aliás, tinha um fundamento real e deliciou Gilberto. Em Caxambu, onde nos dias seguintes se realizou o Encontro da Anpocs, Tambiah se desculpava ao se ausentar porque, "as part of the entourage of the Emperor", precisava juntar-se a ele para tomar uma caipirinha no bar da piscina, ou acompanhá-lo ao restaurante vazio, às 6 horas da tarde, para jantar. "It takes one to know one", diz o ditado americano, lembrança de Howard Becker. A relação amistosa dos dois "imperadores" deleitou a todos nós, a verdadeira entourage de ambos, naquela reunião da Anpocs.

O lado imperioso da sua personalidade era revelada em demandas que aqueles próximos reconheciam, às vezes brincavam, mas todos respeitavam: os horários que ele valorizava tanto, chegando aos minutos; as agendas detalhadas que, dependendo dele, eram definidas com meses de antecedência; suas brincadeiras de deixar recados pitorescos, como o de que "o Coronel Fulano" ligou e, na contracorrente dos tempos, o cultivo de uma atitude politicamente incorreta, não só entre amigos.

Naturalmente que esta personalidade sui generis só foi reconhecida porque, antes, seu mérito acadêmico já havia sido estabelecido. Gilberto foi (e é) figura central no meio antropológico, um intelectual com imenso conhecimento da literatura ocidental, um professor e orientador privilegiado, o pioneiro dos estudos urbanos no Brasil. Mas, aqui, é impossível deixar de colocar, nem que brevemente, este pioneirismo em contexto.

O pioneirismo de Gilberto

Voltemos à década de 1960, quando Gilberto iniciou sua pesquisa de mestrado, mais tarde publicada como A Utopia Urbana (1970). Era uma época em que ainda se associava a antropologia ao estudo de sociedades indígenas. Foi nesse contexto que, de forma inovadora, Lévi-Strauss negou que a antropologia fosse "o estudo das sociedades primitivas" (ainda primitivas, como queria Evans-Pritchard), argumentando que a antropologia não era definida por seu objeto, mas, sim, pelo estudo dos desvios diferenciais que, até então, se fazia por meio de comparações com civilizações longínquas.

(Era, inclusive, esta a razão pela qual, para L-S, a antropologia jamais entraria em crise; seu objeto persistiria enquanto houvesse diferenças entre os humanos: "enquanto as maneiras de ser ou de agir de certos homens forem problemas para outros, haverá lugar para uma reflexão sobre essas diferenças que, de forma sempre renovada, continuará a ser o domínio da antropologia" (1961: 26). 1

Onde fica Gilberto neste quadro? Quando Lévi-Strauss publicou O Pensamento Selvagem em 1966, o livro revolucionário que colocou em paralelo o pensamento científico, o mágico e a arte, explicitando uma horizontalidade das práticas até então impensável, Gilberto já concebia olhar seus vizinhos de prédio com olhos de etnógrafo. Isto é, ele já colocava em prática o que Lévi-Strauss começava a definir como a característica para que se concebesse a antropologia como uma disciplina para sempre renovada. Quando, então, se diz que Gilberto introduziu no Brasil a antropologia urbana (eu prefiro dizer "as questões urbanas"), é preciso notar que ele considerava a cidade como um ambiente legítimo para se questionar os famosos "desvios diferenciais" que Lévi-Strauss, com esforço, procurava tornar válidos.

A combinação de destemor e consistência característicos de Gilberto pode ter sido resultado de sua socialização privilegiada como filho de um intelectual tradutor de vários clássicos, aliada à rápida inserção nas fileiras acadêmicas como professor do novo IFCS e, logo em seguida, à realização do mestrado no Museu Nacional. No Museu, teve a sorte de encontrar Anthony Leeds que, formado na Universidade de Columbia, interessava-se por pesquisar favelas no Rio de Janeiro em uma abordagem que já denominava "antropologia urbana". Pelas mãos de Leeds (ou melhor, dos Leeds), passou um ano na Universidade do Texas e um tempo em Boston, com Yvonne Maggie, e familiarizou-se com os autores que formaram a chamada Escola de Chicago, aproximando-se de Howard Becker. Somando, então, a bagagem literária que cultivou ao longo da vida, a formação clássica da antropologia no mestrado no Museu Nacional, as leituras de Alfred Shutz, Simmel e o foco nas metrópoles (especialmente o Rio de Janeiro como laboratório), e com o apoio de Ruth Cardoso, delas produziu, nas suas palavras, o seu "coquetel particular" (2011: 168). 2

Lévi-Strauss, C. 1961. "A crise moderna da antropologia". Revista de Antropologia, vol. 10, nº 1-2, p. 19-26.

 

The sweet man

Desde sempre a formalidade, o porte altivo, o rigor, marcaram Gilberto como pessoa pública. Para os amigos íntimos, contudo, o quadro era diverso. Aí surgia a figura brincalhona, de ironia fina, criando situações que faziam o interlocutor sempre inseguro (como conta Hermano Vianna) e continuamente deixando no ar a pergunta: será brincadeira, ou ele está falando a sério? Este antropólogo (ou antropóloga) de procedência exótica, com quem vamos jantar, é real...? Ou quem será, entre os nossos conhecidos? As três irmãs dançarinas que moravam no Leme, e que fizeram sucesso nos anos 1940, estavam mesmo naquela sessão de cinema a que fomos...?

Este lado jocoso, comenta-se bastante. Comenta-se menos o seu lado gentil. Gilberto era uma pessoa amorosa, a sweet man. Aqueles que conviveram com ele reconheciam o amigo mais leal, o amigo de todas as horas, aquele que frequentava hospitais, a figura paterna aos/dos seus estudantes, aquela pessoa devastada quando seus alunos se viam frente a alguma dificuldade séria, sem mencionar sua dedicação integral a seus pais. Seu celular estava sempre à mão, em caso de sua presença ser necessária.

Essa sensibilidade aflorou na sua antropologia. Deixo para seus alunos a tarefa de detectar o quanto seu estilo foi se transformando. Mas, para mim, nos dois últimos anos Gilberto não separava mais o palco do backstage. Vejo o objeto material mais emblemático desta fase no seu último artigo, que ele terminou uma semana antes de sua morte, e ao qual havia dedicado os primeiros meses deste ano. "O patrão e suas empregadas domésticas" é tanto uma análise sociológica quanto um apanhado pessoal e terno de todas as mulheres que foram suas auxiliares desde que deixou a casa de seus pais. O artigo é dedicado a Dejanira de Oliveira, Deja, para aqueles que frequentavam sua casa.

Velho, G. 2011. Antropologia urbana: interdisciplinaridade e fronteiras do conhecimento". Mana vol. 17 n.1: 161-185.

Antropólogos tendemos a viver nosso métier. Atualmente não é incomum cientistas sociais direcionarem sua arte analítica para a própria biografia em determinado momento de suas carreiras. No caso de Gilberto, esse artigo mostra um etnógrafo em sua própria casa, um patrão sui generis, com empregadas domésticas aparecendo lado a lado com Alfred Schutz, Georg Simmel, Howard Becker e Erving Goffman, revelando como essas várias mulheres combinavam mundos diferentes em "uma bricolagem fascinante".

Este texto parece fazer par com outro artigo que publicou na revista Mana no ano passado (vol. 17, nº 1), no qual, sob o título camuflado de "Antropologia urbana: interdisciplinaridade e fronteiras do conhecimento", efetivamente escreveu uma avaliação pessoal de sua trajetória intelectual, verdadeiro memorial sobre sua carreira de antropólogo -- aquele memorial que ele não havia escrito na época de seu concurso para professor titular de antropologia do Museu Nacional/UFRJ em 1991, quando preferiu oferecer um relato mais formal, quase burocrático, e basicamente referenciado ao seu currículo.

Seus textos até então sempre diretos, limpos, sua prosa em parágrafos curtos, seu estilo quase-sociológico dão lugar a longos trechos de referências pessoais e biográficas. Frente a esses textos, podemos pensar que os anteriores foram "censurados" pela faceta formal da sua personalidade, ou eram resultado da visão do que é a boa a antropologia. Já nos últimos anos, a persona e os bastidores se misturaram, revelando mais abertamente sentimentos, sua própria biografia, os vieses político e intelectual, em um turbilhão de informações, de avaliações, de experiências, em uma versão solta e pouco domesticada. (Até então, era ao conjunto de seus alunos que ele permitia a polifonia de temas.)

Nossa experiência pessoal

Minha sólida amizade com Gilberto foi um acontecimento improvável. Devo a ele a determinação para que isso acontecesse. Depois que assisti a uma mesa-redonda que ele coordenava em uma reunião da SBS em Niterói, 1991, inesperadamente recebi um convite para almoçar, ao qual se seguiram vários outros. Mas a distância entre nós ainda permanecia, dois antropólogos encontrando amigos, porque esses almoços eram sociais, a conversa amena, embora neles eu tenha sido apresentada a meio mundo da vida acadêmica carioca.

Gilberto era um mediador por excelência, fazendo conexões e colocando pessoas em contato – naturalmente que com sua anuência, e enquanto ele achasse conveniente. Como mediador, era tanto um anjo, na concepção de Michel Serres -- aquele que une --, quanto um trickster, na de Lévi-Strauss. Mas seja como for, desses almoços, visitas a exposições, filmes recém-lançados, encontros com ex-alunos, lembro-me de que muitas vezes ele se referia a um possível semestre que eu deveria passar como visitante no Museu Nacional. Este era um assunto que eu tomava como uma de suas gentilezas (como a de sempre caminhar no lado externo da calçada...). Quando um dia respondi que eventualmente poderíamos conversar a sério, ele respondeu veementemente – estava sendo sério o tempo todo. E assim teve início meu vínculo mais frequente com o Museu Nacional. Um vínculo, inclusive, que ao aproximar meus interesses com outros professores do PPGAS/MN e, especialmente, com os de Moacir Palmeira, me fez rejeitar o tal convite "irrecusável" para participar do comitê de avaliação do Pronex/MCT, aquela ocasião que o levou a reconhecer que, afinal, "cada um tem suas prioridades". Um desentendimento, aliás, que não mais se repetiu.

Na estreita convivência dos últimos anos, Gilberto me ensinou uma grande lição. Sociólogos e cientistas políticos geralmente se espantam com o tipo de relação que os antropólogos mantêm entre si. O estranhamento refere-se aos laços afetivos de longa duração, para o bem ou para o mal, entre orientadores e ex-alunos, ao fato de que formamos o que parece ser "uma família" (ou corporação, para alguns). Anos atrás cheguei a usar a metáfora da "linhagem" para evocar os elos fortes que se desenvolvem entre gerações intelectuais que se desdobram umas nas outras.

A convivência com Gilberto me mostrou como esta visão é incompleta, e que precisa ser complementada por outra metáfora familiar aos antropólogos: os vínculos entre membros de age-sets, os grupos de idade dos sistemas tradicionais africanos; grupos de jovens, no caso, que nascem em um período aproximado de 5 anos. Na nossa época de faculdade, naturalmente outra expressão era usada entre sociólogos e cientistas políticos, dos quais eu fazia parte – referíamos-nos ao compartilhamento de um mesmo épistème, influenciados que estávamos por Gaston Bachelard e Georges Canguillen. Naquela época, Gilberto pertencia a outro grupo, aquele que nos turbulentos anos 1960 já havia optado pela antropologia, aquela "disciplina empirista" na concepção da época.

Mas o tempo faz o seu trabalho. Décadas depois, nos reencontramos quando as diferenças já não eram tão importantes. Creio que estávamos tranquilos em relação à contribuição que pretendêramos dar à disciplina, quando já não importava se ela havia sido alcançada ou não. E, mais, descobrimos que, frente a vários modismos e vanguardas, éramos bastante tradicionais no que dizia respeito a valores acadêmicos, princípios universalistas e critérios de mérito científico. Foi neste mundo da maturidade que pudemos então nos aproximar a ponto de nos tornarmos, finalmente, cúmplices de geração e amigos inseparáveis. Há pessoas que não morrem nem se ausentam; tenho certeza que Gilberto continuará vivo para mim, enquanto eu estiver por aqui.

No CCBB

Uma estorinha para finalizar: há alguns anos fomos juntos, Gilberto e eu, a uma exposição de fotos do Rio antigo. Havia muita gente no CCBB naquele final de semana. Paramos frente a uma fotografia da Lagoa Rodrigo de Freitas deserta (e datada da década de 1920, se me lembro bem) e Gilberto me perguntou: – Você se lembra, Mariza, quando a gente ia caminhar na Lagoa, como era tranquilo...? A pergunta, em voz alta, naturalmente fez várias cabeças virarem em nossa direção, até que uma ex-aluna exclama: – Ah, Gil-ber-to! Só podia ser você...