Teses e Memoriais - 1981 / Mariza Peirano

Proibições alimentares numa comunidade de pescadores (Icaraí, Ceará)

Introdução

 

a. Objetivo de estudo

O homem partilha seu habitat com outros organismos e com elementos do meio físico. Apesar de poder relacionar-se com o ambiente que o circunda através de um sem número de ligações potenciais, o homem apenas efetiva um número limitado delas. A realização de um sub-conjunto de relações, em detrimento de outras relações potenciais, repousa num complexo sistema, cuja natureza pode se desvendar através da pesquisa antropológica.

Este trabalho propõe estudar em detalhe o sistema alimentar de uma comunidade de pescadores e, particularmente, o sistema de restrições e proibições ao consumo das várias espécies de peixe capturadas e reconhecidas localmente. Ênfase especial será dada às proibições que se estabelecem quanto à ingestão, por certas categorias de pessoas, de certos peixes possuidores de uma determinada qualidade denominada "reima", que transforma estas espécies em "peixes reimosos".

Serão igualmente abordados assuntos correlatos, tais como a descrição do meio em que vivem os habitantes da comunidade, as fontes de alimento disponíveis e os hábitos alimentares referentes ao preparo e consumo dos alimentos. Tentar-se-á elaborar o modelo analítico deste sistema, que leva em consideração as relações do homem com seu meio ambiente, comparando-o com o modelo "nativo", não formulado explicitamente, mas perceptível através da observação do comportamento cotidiano dos membros da comunidade.

II

b. Abordagem analítica

Uma proibição alimentar, tema do presente estudo, é percebida, num grupo social, ou pelo comportamento através de que certos indivíduos são proibidos, em circunstâncias determinadas, de comer alguns alimentos, ou pela explicitação verbal de tal proibição, em que se especifica que a desobediência acarreta sanções punitivas. Todavia, é o comportamento ou a norma cultural o que se convenciona chamar de "tabu"?

Baseando-nos nas idéias expostas em Ramos e Peirano (1973) diremos que um "rito" (ou um "comportamento ritual") consiste num comportamento mais ou menos fixo (cujo limite de variabilidade é restrito), de natureza simbólica. O "rito" assim concebido tanto pode salientar a enfatização de uma conduta para se atingir determinado fim (um rito "preceituaI") quanto pode enfatizar a evitação de uma conduta (um rito "proibitivo"). Desta forma, pode-se afirmar que o rito atualiza normas culturais, fixas, simbólicas, tanto preceituais quanto proibitivas. Às normas fixas, simbólicas e proibitivas, chamaremos "proibição cultural" e/ou "tabu".

Hipótese. "Mesmo entre aqueles que se especializaram neste total desacordo em relação à utilização da palavra 'ritual' e em relação à compreensão do desempenho de um rito" (Leach, 1968: 526). As idéias expostas anteriormente não passam, portanto, de hipóteses analíticas para um tema antropológico antigo, mas sempre controvertido. De qualquer forma, deve-se mencionar que tais concepções de rito e tabu não se incompatibilizam totalmente com as posições clássicas, como as de Frazer (1969: 44), Durkheim (1968: 50), van Gennep (1969: 8), Radcliffe-Brown (1973: 1967-190); Mead (1962: 502-5), nem com as de Leach (1971, 1972), Douglas (1970), Steiner (1967), Dentan (1965: 258ss.), por exemplo. Aqui, não se enfatizam as racionalizações mágicas nem as penalidades sobrenaturais, mas, tão somente, a natureza simbólica do comportamento, procurando-se estudá-lo como uma das muitas manifestações do pensamento selvagem, como definido por Lévi-Strauss (1970). Leia na íntegra...